NOMEADO
Cuca Roseta
A morte só mata quando deixamos. Enquanto celebrarmos a vida que a antecedeu, pode ser contrariada e menorizada. A vida enquanto percurso, enquanto afirmação, enquanto legado e enquanto força capaz de inspirar outros a fazerem o seu próprio caminho. De certa forma, é isso que está por detrás do disco e do espectáculo “Amália por Cuca Roseta”. Mais do que uma homenagem de Cuca Roseta à maior voz do fado, trata-se sobretudo de um agradecimento pessoal a uma mulher e a uma obra que, desde o primeiro momento, se tornaram um alicerce fundamental para o seu crescimento artístico enquanto fadista.
Amália Rodrigues despediu-se do mundo a 6 de Outubro de 1999. Há 20 anos, portanto. Mas o seu génio é demasiado flagrante para que deixe de ser celebrado – e nunca será de mais lembrar uma obra que partiu do fado, virou o fado do avesso e convocou também outras músicas populares para o seu universo. É essa enorme vastidão de registos que Cuca Roseta leva também para o palco e para o estúdio, celebrando um reportório que só ao ser reinterpretado pode manter-se vivo e capaz de conquistar novos públicos.
Acontece que “Amália por Cuca Roseta” conta também a história de Cuca Roseta no fado. Ao entregar-se com uma espantosa e arrepiante emoção a clássicos absolutos como “Com que Voz”, “Maria Lisboa”, “Barco Negro”, “Lágrima”, “Vagamundo”, “Fado Lisboeta” ou “Boa Nova”, entre outros, Cuca refaz os passos que a trouxeram para esta música, desde a sua entrada no fado até ao momento presente. Porque havendo outros nomes imprescindíveis no seu percurso – como Lucília do Carmo, Alfredo Marceneiro ou Camané , ao olhar para trás e ao tentar perceber como poderia partilhar o seu percurso com o público, Cuca não demorou a perceber que Amália e os temas que popularizou estavam presentes em cada esquina da sua vida e em cada degrau na descoberta da sua voz única no fado.
Para muitos, o primeiro contacto com Cuca Roseta terá acontecido ao escutá-la numa inesquecível interpretação de “Rua do Capelão”, gravada para Fados, o incontornável filme que o realizador espanhol Carlos Saura dedicou à canção lisboeta. Cuca incluiria ainda o tema interpretado originalmente por Amália Rodrigues no seu álbum de estreia, produzido por Gustavo Santaolalla, pelo que não fará agora parte do alinhamento de “Amália por Cuca Roseta”. E é a essa regra que obedece o reportório que agorá revisitará em palco e em disco. São temas que acompanham a vida fadista de Cuca Roseta, mas que, por alguma razão, nunca tinham sido gravados para os seus discos. Até porque, nos últimos anos, a cantora tem também privilegiado a sua própria escrita e a criação de um cancioneiro inteiramente seu.
Só que os fados e as marchas de Amália estiveram sempre presentes no seu percurso. “Boa Nova”, por exemplo, é desde sempre o tema com que Cuca fecha os seus concertos, por entender que se deve despedir do público com uma mensagem de “paz e amor”. “Com que Voz” é, há muito, um dos seus temas preferidos de sempre do reportório de Amália – não por acaso, construído por Alain Oulman para o poema de Luís de Camões, o poeta que Cuca venera e com o qual faz absoluta questão de povoar todos os seus dias. E é também por isso que “Com que Voz” é a excepção num disco em que a voz surge sempre acompanhada pelo típico trio de fado; aqui, caberá apenas ao piano de Ruben Alves servir de amparo ao canto cristalino da fadista.
Entre fados e marchas que aprendemos a escutar e a amar na interpretação de Amália, Cuca Roseta recua até aos seus primeiros dias na casa de fados, numa altura em que, apercebe-se agora, quase todo o reportório que interpretava tinha, afinal, origem na grande diva do fado. E é por isso que este espectáculo e este disco têm a forma de agradecimento: como uma filha que reconhece nos pais aqueles que a ajudaram a descobrir o seu caminho – mantendo-os como referência, mas sabendo autonomizar-se e fugir do ninho para inventar o seu próprio voo.
“Amália por Cuca Roseta” agradece também o quanto estes temas de Amália foram marcantes em várias fases da vida de Cuca Roseta. Ou seja, mesmo não tendo saído da sua pena, são coordenadas fundamentais para ajudar a cantora a mapear aquilo que lhe aconteceu fora dos palcos. Voltar a cantá-los equivale a refazer esses passos pessoais e ver-se transportada para momentos como a infância, ao cantar a mesma “Marcha do Centenário” – presença constante na sua meninice –, mas também para os seus primeiros dias no Clube de Fado, a casa de Mário Pacheco, onde Cuca fez a sua aprendizagem fadista noite após noite, apresentando-se diante do público enquanto mostrava, pela primeira vez, a emoção que transportava consigo sempre que um fado tomava conta das suas emoções e encontrava o caminho até à sua boca.
Ao registar agora este reportório em estúdio, Cuca Roseta descobriu também o quanto tem este reportório tão vivo em si e o quanto os vários anos de intimidade do seu canto estas palavras é acompanhado pela construção das suas próprias memórias e vivências que lhes foi acoplando. São temas que, não sendo seus, fazem parte de si e passam, para quem, ouve uma verdade sobre a sua arte e sobre os seus sentimentos que não pode ser fingida. Tal como fazem parte de si as guitarras portuguesas de Mário Pacheco, Luís Guerreiro e Sandro Costa.
Ao celebrar o seu encontro com a obra de Amália, Cuca Roseta celebra também a vida e os seus encontros. Aqueles que, em cada momento, fazem de cada um de nós aquilo que somos. E a quem, muitas vezes, falta dizê-lo assim, com todas as letras: Obrigado, Amália. Para não esquecer nunca o porquê de estarmos aqui.